Edição 1.425 página 17 PRECIO SIDADES do Acervo ASSIS ÂNGELO Por Assis Ângelo Costumo dizer que o Brasil é rico em tudo: no ar, terra e mar. Nossas tempestades são grandes, mas não provocam danos tão catastróficos como frequentemente ocorre em outros ares. Na nossa terra, de milhões de quilômetros quadrados, tem de tudo e mais um pouco. Tem água doce a granel, minérios de todos os tipos, florestas incríveis como a Amazônia e uma gente bem-humorada e trabalhadora. Sem falar na fauna. Não há terremotos, nem vulcões a nos assustar. O campo movediço fica por conta dos políticos ávidos por fama e poder. No riachinho que banha a nossa terra, o Atlântico, tem peixe bom pra valer, baleia que canta com graça e até tubarão voador, como já nos provou mestre Luiz Gê. Não há tsunamis no nosso mar, que já gerou um cantor próprio: Dorival Caymmi, autor de belíssimas canções chamadas “praieiras”. Pois é, o Brasil é rico em tudo. Foi aqui que nasceu um dos mais antenados craques do traço em quadrinhos: Líbero Malavoglia, o cara que deu estampa a um herói fora da lei batizado Vira Lata. O Vira Lata nasceu da imaginação de Paulo Garfunkel, como já vimos (J&Cia 1.423 e 1.424). Líbero, leitor voraz de grandes roteiristas e quadrinistas estrangeiros, como Hugo Pratt e Guido Crepax, conheceu Paulo, o Magrão, praticamente por acaso. Isso já foi dito. O que não foi dito é que o personagem de Magrão não despertou interesse imediato do quadrinista. O interesse veio depois. Líbero: “Não foi amor à primeira vista, não. Quando li as primeiras cenas, achei que tinha muito sangue correndo e que talvez não fosse pra mim esse trabalho. Só depois, quando tentei fazer, é que vi que eu podia, sim, representar uma violência real de nossa sociedade”. No papo pingue-pongue que segue abaixo, Líbero satisfaz a curiosidade dos leitores revelando, inclusive, seu amor pelos quadrinhos e a influência que recebeu de mestres estrangeiros da área que hoje ele próprio domina. Após citar J. Carlos, Jaguar, Ziraldo, Angeli, Glauco e Laerte, Líbero confessa que não tem acompanhado passo a passo a produção dos quadrinistas nacionais. Licenciosidade na cultura popular (XXIV) As histórias “estreladas” pelo Vira Lata trazem momentos especiais com Tom Jobim, Luiz Gonzaga, Noel Rosa e Dorival Caymmi. O médico paulistano Drauzio Varella tem participação interessantíssima em várias partes da história do Vira Lata. Assis Ângelo – Sabemos que você gosta muito dos traços de Hugo Pratt e Guido Crepax. Pergunto: em quem ou em que você se inspirou para dar cara e corpo ao Vira-Lata? Bastaram as referências do roteirista Magrão? Líbero Malavoglia – Pratt foi uma inspiração para além do desenho. Foi a primeira vez que os quadrinhos se mostraram pra mim como literatura. A Balada do Mar Salgado é na verdade um romance aventureiro da primeira metade do Século XX que poderia ter sido escrito por Joseph Conrad ou por Jack London (que inclusive aparece em uma das aventuras de Corto Maltese). Corto, personagem principal da maioria das histórias de Pratt, é praticamente o alter ego do autor, ele mesmo um aventureiro. O curioso é que conheci esses desenhos muitos anos antes de me encantar por esse personagem, quando ainda criança lia outras histórias de Pratt no Corrière dei Piccolli, suplemento juvenil semanal do Corrière della Sera (que meu pai trazia). Essa maravilhosa revista vinha impressa em quatro, três e duas cores! Um luxo! E foi lá que me apaixonei por quadrinhos. Foi lá que conheci Hugo Pratt, Sergio Toppi… um monte de autores… E Jean Giraud, o Moebius. Pratt, Moebius e Jack Kirby, da Marvel, foram minhas influências fortes. Eles me apresentavam universos inteiros, desde a desobediência/rebeldia política até a psicodelia. Quando penso de onde veio a cara do Vira Lata, acho que veio desse arquétipo do rebelde que a gente vê no Corto Maltese, misturado com o desejo de representar a miscigenação do povo brasileiro. O indígena, o negro, o caboclo, tinham que estar presentes na cara e no corpo do herói. Isso já vinha do texto do Magrão, mas foi muito bom criar esse nosso “rosto”. Crepax não foi uma influência direta, mas me socorri no erotismo de Milo Manara, porque não é fácil desenhar corpos entrelaçados! Assis – Foi namoro e paixão à primeira vista que você teve pelo personagem Vira Lata ao ler o roteiro do Magrão? Líbero – Não foi amor à primeira vista, não. Quando li as primeiras cenas, achei que tinha muito sangue correndo e que talvez não fosse pra mim esse trabalho. Só depois, quando tentei fazer é que vi que eu podia, sim, representar uma violência real da nossa sociedade. O sangue correu como a tinta. Sou grato por ter sido convidado pelo Magrão para essa cocriação aventureira, erótica e jornalisticamente denunciante de realidades fortes, e por ter conhecido o Carandiru. Assis – Conte do mergulho que você deu para trazer à tona, para o nosso imaginário, esse tão fustigante personagem. Líbero (esq.), Paulo e Assis Moebius Manara
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