Jornalistas&Cia 1432

Edição 1.432 página 10 Por Assis Ângelo PRECIO SIDADES do Acervo ASSIS ÂNGELO “O fogo da carne não se acendia sem espírito. E essa necessidade de espírito chegaria a tal ponto, no século XVIII, que uma mulher de certa categoria não se sentia suficientemente excitada antes de pelo menos meia hora de conversação inteligente. Seguindo a trilha de Descartes, a filosofia já era capaz de reduzir a metafísica do amor ao plano das demonstrações matemáticas. E eis porque, quando uma mulher finalmente se entregava ao seu galanteador, fazia-o com a satisfação superior de não estar cedendo exatamente à carne, mas a um argumento irrespondível. Aliás, mesmo quando fazia alguma resistência, não era absolutamente para opor pela força o que não soubera contrapor pelos argumentos, mas apenas − como escrevia de uma sua personagem o contemporâneo Pigault Lebrun − para não deixar sem um preço a sua derrota. O próprio Marquês de Sade − o Divino Marquês, que um dia distribuiu bombons recheados com cantárida num bordel de Marselha, provocando o maior escândalo jamais presenciado numa casa de escândalos − chegou a apontar o aparecimento do romance como consequência da galanteria, que refinava os espíritos fazendo ainda a fortuna de muitos especialistas na incipiente ciência dos males venéreos. Escrevendo um ensaio intitulado Ideia sobre Os Romances, o Marquês notou que o homem oscila entre a superstição e o amor, concluindo: ‘..et voilà la base de tous les romans.’ Amor de tipo especial, que serviria realmente de base a Choderlos de Laclos para compor a mais pungente história de um libertino, a do Visconde de Valmont, no seu romance As Ligações Perigosas. O dramático Visconde de Valmont, que, por puro amor da libertinagem, escrevia cartas fingindo amor puro à pudica Mme. de Tourvel debruçado sobre o corpo de uma amante, o que confessava depois a uma terceira mulher com este requintado pormenor: ‘Elle me servit de pupitre pour écrire a ma belle dévote’. Mas o espírito do século não se revelaria apenas na filosofia e na literatura, onde se demonstrava que o vício era a melhor forma de protestar contra a autoridade, simbolizada na virtude. A galanteria e a libertinagem invadiram também o teatro, a pintura, a arquitetura, Licenciosidade na cultura popular (XXXI) (Continuação do texto publicado em J&Cia 1.430 e 1.431. Ele trata de um artigo intitulado Galanteria, publicado em setembro de 1962 na extinta revista Senhor, no qual José Ramos Tinhorão discorre com desembaraço sobre licenciosidade e sexo no século 18. Atém-se à Europa, munido de dados históricos colhidos em livros que devorou com o prazer de quem ama o que faz.) a moda e até o mobiliário, pois foi exatamente no século XVIII que os franceses adotaram do Oriente o uso do sofá, com todas as suas implicações. A nova sociedade burguesa, mal-acomodada nos rígidos esquemas herdados da organização feudal, ao levar o escândalo ao campo das artes estava apenas pregando a libertação da educação retórica jesuítica do século XVII, que tão tiranicamente os obrigava nos planos da cultura e do sexo à obediência dos modelos clássicos. As representações das peças de Molière caíram de 132 para apenas 66, anualmente, e em seu lugar entraram a proliferar as óperas cômicas, os ballets, os teatros de boulevard e as marionnettes. Era a vitória dos chamados petits genres, que deixariam como legado às gerações futuras tantos exemplos de obras-primas construídas sobre o nada. Segundo Mercier, havia no Palais Royal um teatro público, onde, em 1791, se representou uma comédia tão espontânea que a cena de maior comicidade deu-se quando os três casais de atores começaram a agir no palco exatamente como os casais de verdade agem em casa, geralmente à noite. Os mais calorosos aplausos − observou Mercier − partiram das mulheres, que compunham, aliás, a maioria da assistência. Na pintura, Boucher, Watteau, Lancret e principalmente Fragonard, desprezando a sadia nudez das deusas de Lebrun e Nicolau Mignard, vestiam suas dianas e pastoras pelo modelo daquelas meninas fáceis de Paris que − no dizer indignado de George Brandes – ‘tinham orgulho em mostrar seus seios e traseiros, ora no Trianon ora em Luciennes’. Os maiores conquistadores da época davam-se ao luxo de mandar pintar suas amantes em posições provocadoras, e Casanova, de passagem por Paris, estava destinado a pagar caro essa galanteria: mostrando ao Rei Luís XV o retrato da jovem irmã da atriz O’Morphi numa pose cheia de intenções, o soberano revelou tal interesse em conhecer a moça, para ‘apreciar com justeza a fidelidade da reprodução’, que não houve como deixar de trazê-la ao retiro do Parque dos Cervos − ficando daí por diante Luís XV com o original e Casanova apenas com a pintura. O arredondamento das formas, tão apreciado nas mulheres, acabaria influenciando a arquitetura, também sujeita até ali à rigidez das linhas clássicas. A figura de Pan passou a povoar os jardins, ao fundo dos quais a necessidade de pousos quietos para o exercício do amor fez surgirem as petites maisons, perfeitas garçonières de um tempo em que não havia apartamentos.” (continua na próxima edição) Foto e ilustrações por Flor Maria e Anna da Hora Marquês de Sade Assis com publicações do gênero Contatos pelos [email protected], http://assisangelo.blogspot.com, 11-3661-4561 e 11-98549-0333

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