Jornalistas&Cia 1435

Edição 1.435 página 30 O general João Baptista de Figueiredo iniciava seu governo, o último do regime militar, sem o canhão do AI-5 e com o compromisso da abertura institucional. Sem paciência, nem sofisticação para conduzir esse processo político, deixava tudo com o ministro da Justiça, Petrônio Portella, que se articulava com o general Golbery do Couto e Silva, sempre nas sombras, e se credenciara para isso ao pilotar a distensão do general Ernesto Geisel. Muito bem relacionado com os jornalistas que cobriam o jogo parlamentar, Petrônio era um mestre na arte da criação de expectativas e do vazamento controlado de informações. Fora ele que, ao apagar das luzes do governo Geisel, articulara a redação da emenda constitucional que extinguia o AI-5 e restabelecia o habeas corpus. Já como ministro da Justiça fez sua primeira mágica: acabou inteiramente com a censura à imprensa e às diversões públicas mediante um artifício jurídico que emparedou as repartições da Polícia Federal encarregadas do serviço sujo. A censura sumiu sem que houvesse um ato formalizando esse desaparecimento. Heitor de Aquino Ferreira, assistente de Golbery, comparava a abertura a uma caixa de lenços de papel, em que um lenço retirado puxa naturalmente o seguinte. Depois da censura chegou a vez de manobra muito mais complicada, a anistia. Parecia haver um dilema quase insolúvel. De um lado, a oposição já estava em plena campanha, com um mote irresistível. Era a Anistia Ampla, Geral e Irrestrita. Impulsionada por figuras nacionais, entre elas o arenista dissidente Teotônio Vilela, essa campanha n A história desta semana é novamente uma colaboração de Eduardo Brito ([email protected]), ex-Estadão, Jornal do Brasil, Correio Braziliense e Jornal de Brasília. A mágica de Petrônio chegou às ruas, em um prenúncio de outras que viriam, até como as Diretas Já. De outro lado, o governo Figueiredo ainda era um governo militar. Permaneciam ativos, ativíssimos até, os integrantes da Comunidade de Informações, a que se somavam outros oficiais identificados com o que se chamava de Linha Dura, avessos a qualquer concessão maior. Para complicar, no meio de tudo estava o que os próprios linhas-duras chamavam de “tigrada”, a turma que colocara a mão na massa, prendendo, torturando e assassinando. Parecia um desafio grande demais até para um prestidigitador nato como Petrônio Portella. O ministro da Justiça pretendia seguir o mesmo rumo de outras iniciativas recentes. Daria um jeito de fazer o que queria – e que era a abertura de verdade – sem tornar claro que fazia o que queria. E, como ficou claro mais tarde, sua intenção era devolver os direitos políticos a todos os que os haviam perdido por conta dos atos institucionais do regime, assim como devolver à liberdade todos os que haviam sido presos em função dos mesmos atos e da legislação de exceção neles baseados. Nesse ponto, o desafio de Portella deixou de residir nas cobranças dos oposicionistas – assim como dos cassados, exilados e aprisionados. O problema estava nos militares. O ministro havia tirado do bolso uma fórmula que ajudava muito, expressada nos termos “anistia para ambos os lados”. Na prática, significaria absoluta impunidade para os envolvidos direta ou indiretamente nas punições. Ponto para os quartéis. Mas os militares permaneciam na exigência de que os “crimes de sangue” não fossem incluídos na anistia. Isso aparentemente estava no projeto elaborado no Ministério da Justiça, que no parágrafo 2º do artigo 1º determinava: “Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”. Eram os tais crimes de sangue. A pedra de toque estava, em primeiro lugar, no uso da palavra “condenados”. A maior parte dos presos ou nem tinha sido condenada ou ainda podia recorrer. De quebra, nos meses seguintes, a própria ditadura libertaria os presos que não haviam sido beneficiados pela Lei da Anistia. Enquanto uns ganharam o indulto do presidente Figueiredo, outros tiveram seus processos revisados pelos tribunais militares. Os fatos mostram a esperteza de Petrônio. Tudo indica que esse artifício serviu para encobrir aquilo que realmente desejava, que era a autoanistia, que acabou acontecendo. Como disse o professor Carlos Fico, “enquanto todo mundo ficou tentando de todas as formas incluir os condenados pelos ‘crimes de sangue’ na anistia, o perdão aos torturadores ficou em segundo plano e foi aprovado com facilidade”. Petrônio Portella não queria, porém, Petrônio Portella Arquivo Senado Federal Eduardo Brito

RkJQdWJsaXNoZXIy MTIyNTAwNg==