Edição 1.459 página 33 aquele artefato. Ou se o adquirira ali mesmo, na ilha. De qualquer maneira, colocara em prática a imprudência de atear fogo à manufatura em ambiente público, numa época em que Fidel Castro resolvera punir, com rigor draconiano, o consumo de drogas e a eventual utilização da ilha como rota do tráfico. Resumindo: o italiano tresloucado havia sido flagrado com o baseado e encaminhado à delegacia, onde estava detido, incomunicável. Pela conversa, consegui entender, por alto, o andar dos acontecimentos, mas a grave comitiva de italianos continuava aquilo que, hoje, muitos tratam por “narrativa”. Agora adentravam os detalhes. Perguntei a Spatafora se era aquilo mesmo que eu havia entendido. Ele pediu que me acalmasse e não atropelasse a conversa. Enfim, Spatafora, o amigo Spata, nos traduziu: a comitiva cerimoniosa viera à nossa mesa perguntar se dispúnhamos de algum dinheiro para ajudar numa vaquinha, pois o companheiro de viagem deles, recolhido em flagrante, só seria libertado mediante o pagamento de uma polpuda fiança. Bem que haviam juntado o que lhes restara das finanças. O miúdo montante, todavia, ainda era insuficiente. Enfim, seria um alívio se pudéssemos ajudar no crowdfunding − bem, ainda não se usava este anglicismo. Claro que, mais tarde, juravam, nos reporiam a contribuição. Até com juros. Perguntamos, aflitos, se haviam consultado a Embaixada da Itália em Havana. Sim, responderam. A diplomacia estava de mãos atadas − eis o diagnóstico. A embaixada se incumbia apenas de prestar assessoria jurídica ao detento e, mais tarde, com o grupo de viajantes já em território italiano, interceder nas negociações. Os diplomatas receberiam por via bancária o total da fiança para só então encaminhá-la a quem de direito. Dessa forma, libertariam o conterrâneo apreciador do jazco, do bagulho, da erva, do legues dum. Nenhum dos quatro jornalistas brasileiros tinha dinheiro sobrando. Nem raspando as economias. O pouco que eu havia levado havia sido gasto com complicados e brevíssimos interurbanos para ter notícias de meu filho, Victor, então em vias de completar um ano. Era uma aventura telefonar de Cuba para o Brasil na época. Aliás, uma desventura. Tudo o que pudemos fazer era tentar acalmar os italianos e incentiválos a voltar à Europa, mesmo sem o companheiro imprudente. A viagem de retorno estava marcada para o dia seguinte. Já em terra natal, dizíamos, eles teriam tempo de procurar os familiares e amigos do rapaz, juntar os recursos necessários e enviá-los por mala diplomática a Cuba. Que ficassem tranquilos quanto ao tratamento insular do conterrâneo. As celas de Havana não eram como as de Guantámano. Quando fomos fazer o desjejum, na manhã seguinte, os italianos já haviam viajado de volta. Perguntamos aos funcionários do hotel se haviam coletado o suficiente para pagar a fiança do imprudente. Não, não haviam conseguido. Um dos garçons resumiu: o rapaz da marijuana havia dado é muito sorte por ter sido impedido de embarcar. Só então percebi que o clima sisudo da véspera havia se tornado fúnebre. Hoje, procurando na internet, mesmo com minha incompetência digital, descubro que, em 3 de setembro de 1989 ocorreu o pior acidente da aviação cubana. O voo 9046, da companhia Cubana de Aviación, partiu do Aeroporto José Martí rumo a Milão, na Itália, com escala técnica em Colônia, na Alemanha. Não chegou a nenhum dos dois destinos. A aeronave era nova, um Illyushin IL-62M, de fabricação soviética. Fizera a primeira viagem apenas sete meses antes. Completara um total de 1.326 horas de voo e 125 pousos. Em Havana, embarcou primeiro a tripulação de 11 pessoas. Ingressaram depois dois passageiros cubanos, além dos 113 turistas italianos. O avião caiu em uma área urbana, pouco depois de decolar. Sofrera os efeitos de ventos brutais. Na queda, destruiu 33 casas e matou 24 pessoas em terra firme. Todos os passageiros morreram, embora quatro tenham sido resgatados ainda com vida. Procurei detalhes sobre o passageiro que não embarcou. Não encontrei. Seu nome, avalio, sequer deve ter constado da lista. Imagino agora um homem de pouco mais de 60 anos, sentado em um bar com os amigos, na Itália, bebericando um vinho ou uma grapa e, entre baforadas, contando a eles uma história dolorosa e inacreditável. Uma história que revela a terrível sorte dos companheiros de viagem − e a sua própria sorte. Avião caiu em área urbana
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