Edição 1.463 página 24 Tive o privilégio de conviver com o jornalista gaúcho Paulo Totti, chamado por muitos de mestre dos mestres. Por essa razão fui um dos que lamentou profundamente a sua morte, na manhã de 26 de abril, em Salvador, aos 85 anos. A colega Maíra Magro resumiu bem o tamanho da perda: “Desapareceu o nosso Gay Talese”, em alusão ao americano criador do Novo Jornalismo, movimento que agrega aspectos literários às reportagens e entrevistas, com descrição detalhada de cenas e abordagem humana para personagens. Encantador de redações e de gerações, Totti fez amigos e discípulos pelo mundo, cada qual com ao menos um episódio próprio para relembrar vividamente da relação pessoal ou profissional com ele. Dos meus, adoro repetir o ensinamento norteador que tirei de uma palestra ministrada por ele na saudosa Gazeta Mercantil em 2000, lá na redação paulistana de Santo Amaro. Depois de ter dado muitas orientações valiosas no varejo, de mesa em mesa, sugeri que as desse a todos, com lousa e tudo. Topou e deu show. O tema era a linguagem jornalística e os meandros da profissão. Foi uma verdadeira aula magna, destinada a repórteres e a editores de todas as idades. O que Totti disse logo no início do workshop marcou-me para sempre: “Antes de ser jornalista, você é um comunicador, e, por esse motivo, deve buscar alcançar o público mais amplo possível, mesmo escrevendo para um jornal especializado e elitizado como a nossa folha diária de economia e negócios”. Quanto ao fazer jornalístico em si, o professor mor lamentou, já naquela época, o fato de que muitos se contentavam em produzir matérias apenas colhendo informações nos meios eletrônicos à disposição nas estações de trabalho, por meio de releases, e-mails e, no máximo, telefonemas “pra pegar umas aspas”. Ele ressaltou a importância insubstituível de ir ao encontro da fonte, de sentir o ambiente ao seu redor, de perceber presencialmente as nuances, o tom da voz, os gestos e as pistas ínfimas que serviriam de hiperlinks para fatos não óbvios. Para ilustrar a sua iluminada argumentação, Totti compartilhou uma experiência dele: o momento em que entrevistou um importante executivo estrangeiro de uma filial brasileira de multinacional e percebeu, ao observar o pulso do entrevistado, uma fitinha azul do Senhor do Bonfim. Esse singelo n O texto desta semana é novamente uma colaboração de Sílvio Ribas ([email protected]), jornalista, escritor, consultor em relações institucionais, atualmente correspondente da Gazeta do Povo no Senado Federal. O Gay Talese brasileiro Silvio Ribas adereço da cultura baiana, captado pelo olhar atento do veterano, abriu as portas para uma conversa reveladora e verdadeiramente exclusiva. A elegância de trato e de escrita era a sua maior marca. Pois bem. Naquela pouco mais uma hora de apresentação, o editor da capa mostrou- nos que o velho e bom jornalismo vai muito além de relatos frios e distantes da realidade do leitor. A nossa profissão é, antes de tudo, uma arte de conexão entre gentes, de compreensão profunda e de narrativas autênticas para o proveito do outro, qualquer outro, a quem devemos respeitar e servir. Como uma lição de grilo falante, tento jamais esquecê-la para não cair nas tentações da preguiça, da presunção, da arrogância e do pedantismo. Agradeço até hoje a Totti por também ter puxado a minha orelha quando eu liderava uma editoria de Nova Economia na Gazeta. Atrevido, achei que o editor advogava em favor do passado contra o futuro. Mas logo entendi o magnânimo alerta dele para o risco de miragens cibernéticas me arrancarem os pés do chão e subirem a minha cabeça nas nuvens. Com um abraço dele, tudo ficou no lugar. Na torrente de mensagens de ex-companheiros nas redes sociais exaltando a capacidade única de Totti de aliar competência técnica e rigor na busca pela qualidade à sua constante gentileza e paciência, gostei do interessante testemunho de Eugênio Meloni. O colega relembrou uma das várias matérias antológicas do nosso mestre, que, ao relatar a crise econômica no país vizinho no início dos anos 1990, abriu com a melancólica tentativa de leiloar um touro campeão. Houve só dois lances: o primeiro, muito próximo do preço mínimo, e o segundo, do próprio dono, para evitar que o animal fosse vendido por valor muito abaixo do potencial. Direto e objetivo, sem abdicar do poder das sutilezas. Natural de Veranópolis (RS), Totti chamava o jornalismo de sua “cachaça”, tendo sido apresentado a ela na Folha da Tarde, de Porto Alegre. Em 1968, ao lado de Mino Carta e de dezenas de outros, ajudou a fundar a revista Veja. Na Gazeta, o sempre repórter foi quase tudo, inclusive correspondente em Buenos Aires, Washington e Cidade do México, Era referência em tudo. Passou também por Última Hora, Jornal do Brasil, O Globo e, por fim, Valor Econômico. Neste, por uma série de reportagens − China, o império globalizado, de 2007 −, ganhou o Prêmio Esso. Paulo Totti
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