Jornalistas&Cia 1520

Edição 1.520 - pág. 31 ANOS Luiz Cláudio Cunha Geraldo Magela/Agência Senado n Nesta edição concluímos a reprodução − em capítulos, por causa do tamanho – do texto que Luiz Cláudio Cunha (cunha.luizclaudio@ gmail.com) publicou no Observatório da Imprensa em homenagem a Vladimir Herzog, cuja morte nos porões da ditadura completa 50 anos em setembro próximo. As outras partes estão em J&Cia 1.509, 1.510, 1.511, 1.512, 1.513, 1.514, 1.515, 1.516, 1.517, 1.518 e 1.519 u Cunha era chefe da sucursal de Veja em Porto Alegre e tinha 24 anos em dezembro de 1975 quando recebeu de Audálio Dantas, então presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, a tarefa de coordenar a coleta de assinaturas no Sul para o manifesto contra o IPM do “suicídio” de Herzog. u Autor de Operação Condor: O sequestro dos uruguaios, Cunha trabalhou em diversos outros veículos, como os jornais O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil, O Globo, Correio Braziliense, Zero Hora, Diário da Indústria e Comércio, e as revistas IstoÉ, Afinal e Playboy. Naqueles tempos em que mataram Vlado (parte 12 − final) Acerquei-me então de uma mesa sem máquina de escrever, ocupada por um redator de 69 anos, trajando um burocrático terno e gravata de tons escuros. Pernas cruzadas, tinha o olhar perdido nos círculos de fumaça que ele desenhava com o cigarro e que se dissolviam lentamente no ar. Minha chegada o tirou de suas divagações e, sem descruzar as pernas, abriu um sorriso doce, acolhedor, que dissolveu meus receios. Eu estava diante do maior poeta do país, Mário Quintana, o único sobrevivente de uma nobre linhagem que incluía Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Moraes. Desde 1953, aos 47 anos, Quintana editava a página literária de todo sábado no Correio do Povo, onde brilhava o seu lendário Caderno H, uma sucessão de epigramas construídos com sutileza, ironia e graça. Além de sua página semanal, ele copidescava o texto dos repórteres, fazia títulos e traduzia telegramas das agências de notícias. Tradução era sua praia: fluente em francês e inglês, verteu mais de 130 obras da literatura universal, incluindo Proust, Balzac, Voltaire, Virginia Woolf e Saint-Exupéry. Quem imagina que ser poeta é uma condição inescapável de nefelibata, não deve estar pensando em Mário Quintana, que nem gostava de ser chamado assim: “Poeta não é profissão. É um estado de espírito, ou coma. Minha profissão é jornalista. Assim está escrito na minha carteira profissional”, escreveu ele. E para quem acha que poesia é a fronteira da abstração, Quintana completou: “Eu não entendo nada da questão social / Eu faço parte dela, simplesmente…” Na ditadura do AI-5, o poeta se deparou com a censura, quando viu sua editora desistir de publicar o primeiro livro infantil – Pé de Pilão – ao tremer diante dessa frase ameaçadora: “O soldado é um cavalo montado noutro cavalo”. Ao votar na eleição de 1989, a primeira para presidente em três décadas, Quintana quebrou a discrição e, veemente aos 83 anos, abriu seu voto com um verso profético: “Esse Collor tem olho de louco. Vai acabar com todos os marajás e só vai sobrar ele”. [32] O doce Quintana pegou o abaixoassinado do IPM, leu rapidamente a introdução do texto que contestava o Exército, alargou ainda mais o seu sorriso, em mudo, mas eloquente, atestado de concordância, assinou e me devolveu. Sempre sorrindo, sem dizer nada. Nem precisava. Nessa jornada de apenas dois dias pelas maiores redações de Porto Alegre, cumprindo a honrosa pauta de Audálio Dantas, nós conseguimos 139 assinaturas – quase 30% das 467 publicadas originalmente na edição do Unidade, o jornal do Sindicato de São Paulo. Um número espantoso, que nos encheu de orgulho. Mas, a assinatura que mais me emocionou foi a do poeta sempre jovem e quase septuagenário. Quintana disse uma vez: “Uma boa causa não salva um mau poeta”. A boa causa pela verdade sobre a morte de Vladimir Herzog ganhou, com Mário Quintana, a força e a perenidade do poeta imortal. A causa e o sorriso do poeta O poeta Quintana, com o cigarro e o sorriso [32] CUNHA, Luiz Cláudio. A glória do texto: Mário Quintana. In Vintenário: duas décadas da IMPRENSA em revista. São Paulo: Imprensa Editorial, 2007. Revista IMPRENSA, dezembro de 1990, ano IV, nº 40, p. 334-337.

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